terça-feira, 12 de maio de 2009

Maldição Inca

Há certos lugares no mundo que exercem um fascínio sobre o viajante, embora tenhamos o sonho impossível de conhecer cada parte desse planeta. No meu caso, Machu Picchu estava no topo da lista. Lembro que quando estávamos voltando à América do Sul, depois de percorrer a Europa, Oriente Médio e Ásia, Guther e eu concordávamos de que se tivéssemos que escolher somente um país latino-americano, seria o Perú. Não havia nenhuma dúvida. Hoje, depois de concretizar o meu sonho, acredito que boa parte do fascínio é resultado de uma influência direta da forte propaganda turística peruana. É uma pena, mas em uma viagem sempre corremos o risco de nos frustrarmos com certos sonhos de consumo. Imagine então depois de conhecermos mais de 30 países. Talvez a culpa disso tudo também seja a grande expectativa que alimentamos. Afinal, investimos tempo e dinheiro em uma viagem e esperamos que o investimento seja digno. Quem nunca foi enganado por uma agência de turismo ou, até mesmo, pela própria imaginação?

A primeira etapa
Minha experiência em Machu Picchu começou na cidade de Cusco, que fica a 3.400 metros do nível do mar. A altitude não nos afetou muito porque já percorríamos grandes alturas desde a fronteira da Argentina com o Chile e depois na Bolívia. No entanto, quem chega de avião de países como o Brasil, principalmente de cidades que estão bem próximas da costa, sofre com o Sorojche, "o mal das alturas", nome dado pelos peruanos ao mal estar que atinge muitos turistas. Os sintomas mais comuns são tontura, náusea e dificuldade de respirar. Acostumados com as grandes altitudes e a mastigar folhas de coca, não tivemos que ficar alguns dias nos aclimatizando, e logo pesquisamos as possibilidades de como chegar a Machu Picchu.


Peruanas com roupas típicas e até acompanhadas de lhamas se oferecem para uma foto em Cusco. Mas não se iluda, a simpatia é remunerada

Diferentemente do que muitas agências dão a entender aos turistas que pesquisam a respeito, não existe apenas um caminho para o local sagrado dos Incas. A verdade é que o governo peruano batizou uma das rotas de oficial e passou a controlar a entrada de turistas por esse caminho. Por dia somente 500 pessoas são autorizadas a entrar, incluindo guias, cozinheiros e carregadores. Por essa razão, turistas fazem reserva da entrada pelo site do governo com muitos meses de antecedência. Não foi o nosso caso. Optamos por uma das várias rotas alternativas até Machu Picchu, que inclui um dia de descida de bicicleta (down hill) e três de caminhada, além de acomodação em pequenas pousadas ao logo do caminho. E o mais importante, não é necessário nenhuma reserva. Essa rota, ou Caminho Inca, é chamada pelas agências de turismo de Jungle Trip, ou em bom português, Caminho da Selva. Mas para quem tem pouco tempo e energia física, há até a possibilidade de conhecer Machu Picchu em um dia, saindo de Cusco de ônibus até a estação de trem que vai a cidade de Águas Calientes e de lá pegar um ônibus que sobe ao parque arqueológico. Confortável e rápido.

Sedentos por aventura, optamos pela Jungle Trip e começamos nossa jornada pela manhã dentro de uma van por três horas. Depois do café da manhã, subimos nas bicicletas e começamos a descida que levou cerca de quatro horas. Chegamos a tarde e conhecemos nosso guia, a primeira frustração da aventura. Me dei conta de como um guia com talento e bem treinado faz falta em uma viagem como essa. Ela tem outro gosto quando sentimos que podemos confiar nas informações, principalmente quando passadas com empolgação. Fatores em falta no nosso guia peruano.

Mais caminhada
No dia seguinte começamos a primeira etapa de caminhadas, de cerca de 7 horas diárias, subindo e descendo. Passei a entender porquê uma jornada como essa se torna algo tão pessoal e reflexiva. A falta de ar, causada principalmente pela grande altitude e intensificado pelas íngremes subidas, impede que você converse muito com os companheiros de equipe. Somente nas paradas para descansar, depois de recobrado o fôlego, é que você se permite um luxo desses. Como em um deserto sem água, no Perú parece que é o ar que está em falta. Aliás, água foi algo que não faltou. Fomos presenteados com um belo parque de águas termais no fim do dia, construído em um vale e cercado por belas montanhas na pequena cidade de Santa Tereza.
Quebrados, mas empolgados, calculamos que o segundo dia seria fácil, já que é realizado quase que somente em áreas planas. O que não contávamos era com os trilhos de trem. A questão é que cada trilho é instalado em distâncias diferentes um do outro. Ou seja, enquanto que no dia anterior você sofria com a subida, mas pelo menos tinha a recompensa da paisagem, sobre os trilhos são 7 horas olhando para baixo e calculando onde pisar. O lado positivo disso tudo é que o Caminho Inca possibilita aos peregrinos conhecer a alegria que vem depois de um grande esforço físico. Perceber que você venceu aquela montanha ou o percurso ao lado de toda a equipe traz uma satisfação interior. Você diz para si mesmo: venci mais um dia.

Graças a forte propaganda turística, centenas de pessoas visitam Machu Picchu todas os dias. Nem mesmo o tempo ruim impede a chegada dos turistas

Quase lá
Finalmente chegamos a Àguas Calientes, última cidade e ponto de parada antes de Machu Picchu. Águas Calientes fica ao pé da montanha onde a cidade perdida dos incas foi construída e possui um parque de águas quentes, o que explica o nome. O parque deixa a desejar, mas ao menos dá um alívio aos pés esfolados pelos três dias de exercício. É no quarto dia, às 4 horas da manhã, que finalmente chega a última etapa do caminho. Turistas de todas as partes do mundo se encontram na escuridão da cidade para subir as centenas de degraus que levam até Machu Picchu. É nesse momento que passei do desprezo a sentimentos bem mais malignos quanto ao nosso guia. Ele sumiu, escada acima, nos deixando no completo escuro. O nosso salvador foi um colega de equipe que trouxe uma lanterna e ajudou cerca de 6 pessoas a visualizar os degraus a beira de um grande barranco. Nunca gostei tanto de um norte-americano, quase cantei “Amazing Grace”.

Depois de mais de uma hora subindo degraus, metade deles iluminados pelos primeiros raios da manhã, chegamos ao portão de entrada de Machu Picchu. Só sabia que era a cidade perdida dos incas pela placa de entrada, porque uma névoa densa cobria toda a montanha. A experiência se tornou ainda mais difícil porque o calor do corpo começava a baixar, junto com a chuva e o vento gelado da montanha que batiam sorrateiros nos centenas de turistas mal agasalhados. Por quase quatro frias horas esperamos a névoa se dissipar. E nada do sol. Molhados e frustrados, voltamos a entrada do parque arqueológico para comer e tomar algo quente. Neste momento, os ônibus de excursão de um dia começavam a chegar. Que inveja senti daqueles turistas bem agasalhados e secos que chegavam justamente quando o sol mostrava sua cara. A minha pergunta era: por que mesmo levantamos as 4 horas da manhã? Ah sim, Machu Picchu estava nos esperando. Até tinha me esquecido.

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial